domingo, 18 de abril de 2010

A tragédia do crack no RN
Marcelo Hollanda
Da Tribuna do Norte


Por onde passa ela deixa um rastro de destruição e sofrimento. A droga que mais destrói vidas no Brasil busca vítimas ainda na infância e causa dependência logo no primeiro uso é a mesma que já se espalhou por 99% do Rio Grande do Norte, segundo admitem as autoridades.
O crack, primo miserável da cocaína, cujo preparo qualquer pessoa pode fazer, em qualquer lugar e com ingredientes lícitos como o bicarbonato de sódio e água destilada, produziu um dos maiores desafios da atualidade: deter a escalada de uma das mais virulentas drogas que se tem conhecimento.
No Rio Grande do Norte, não há uma estatística ou estimativa sobre o consumo e da distribuição do crack. O último trabalho publicado a respeito, dimensionando o problema no Estado, foi produzido em São Paulo com a supervisão de Ronaldo Laranjeiras, professor orientador do programa de pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Unifesp.
Em 2004, sob a coordenação em Natal da professora Maria Dalva Araújo, da Faculdade de Enfermagem da UFRN, foram pesquisados, para o trabalho do professor Laranjeiras, 1.663 estudantes na faixa de 13 a 15 anos para saber em que porcentagem e circunstâncias ocorreram o uso de drogas.
Naquela época, nas escolas do ensino fundamental e médio em Maceió, por exemplo, o crack já figurava em terceiro lugar, depois da maconha e cocaína, nessa ordem, e antes dos anfetamínicos e solventes.
As drogas mais utilizadas pelos estudantes da rede municipal e estadual em Natal, com exceção do álcool e do tabaco, pela ordem, foram os solventes, maconha, anfetamínicos, ansiolíticos e cocaína. A estimativa de uso foi de 16,5% do total. Treme só de pensar o que um novo estudo revelaria agora.
Seis anos depois, o professor João Dantas Pereira, do Departamento de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFRN, planeja dar essa resposta diante do crescimento vertiginoso do crack registrado em todas as camadas sociais, principalmente nas de baixa renda.
Hoje, segundo Dantas, o uso do crack, que já atinge crianças na faixa de sete anos (fato incomum em outras drogas) ainda guarda uma proporção pequena diante do álcool, que é uma droga lícita e socialmente aceita.
"É a velocidade da expansão do crack que preocupa", afirma o professor.
Apesar do apoio que vem recebendo a UFRN e do interesse de alunos em participar da pesquisa, João Dantas Pereira encontra uma dificuldade comum a todos que, de uma certa maneira, têm como proposta tratar os efeitos ou abrir portas de conhecimento sobre o crack - falta de financiamento. 
 
Promessa e realidade
A despeito das promessas oficiais de priorizar o combate ao tráfico no Estado, o fato é que o próprio Conselho Estadual de Entorpecentes (CONEN), órgão vinculado à Secretaria de Segurança e Defesa Social, tem hoje menos servidores que antigamente e nenhum estagiário, ao contrário de antes. E entre os oito servidores atuais, dois estão de licença-prêmio.
Nesta semana, porém, uma conversa entre o presidente interino do Conen, Vantuil José Carvalho de Oliveira, com a chefe de gabinete da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social recolocou o problema nos seguintes termos: há interesse do Governo do Estado em prover ao Conen condições reais de realizar o seu trabalho dentro das instâncias a que se propõe, fornecendo mais pessoal e estrutura de trabalho.
Outro problema é que falta ao Conen orçamento próprio - o dinheiro repassado mensalmente é o que a Secretaria manda. Com isso, apesar de toda a boa vontade, fica difícil empreender qualquer ação mais substancial, exceto apagar incêndios produzidos a partir da realidade nua e crua do avanço das drogas. Isso, ao que parece, também preocupa o recém-empossado secretário Cristovão Praxedes.

COMUNIDADES
Situação idêntica de falta de recursos e estrutura vivem as comunidades terapêuticas da região metropolitana de Natal, muitas delas engajadas a movimentos religiosos, que desenvolvem programas de desintoxicação e ressocialização dos dependentes de álcool e drogas.
De maneira muitas vezes improvisada, sem apoio profissional adequado, esses centros vivem de doações, inclusive de pessoas recuperadas, para cobrir uma despesa mensal que não ultrapassa a R$ 200,00.
É o caso da Carena - Casa de Recuperação Novo Amanhecer -, que mantém três unidades na Grande Natal. Na Lagoa do Bonfim, onde está uma delas, 20 pessoas atualmente estão internadas - 70% delas para se tratar da dependência do crack, segundo o pastor Lúcio Moreno da Costa, o responsável. Os restantes 30% dos beliches que estão distribuídos em três quartos são ocupados por dependentes de álcool.
Subsídio que é bom, nenhum tostão. "Nos mantemos exclusivamente com doações e com o que conseguimos apanhar de frutas e legumes no Ceasa todos os sábados", diz o pastor Lúcio.
Acessar recursos oficiais que, sabe-se, existem, encontra uma barreira intransponível na quantidade de documentos exigidos e na burocracia dos cartórios.
A mesmíssima situação é vivida pela Comunidade Nova Aliança, de Pium, onde, neste momento, dos 60 internados, apenas 10 são dependentes de álcool - as outras 50 foram parar lá por conta do crack.
A Aliança, para onde a Prefeitura de Parnamirim manda muitos jovens todos os meses, tem a sorte de contar com o trabalho voluntário de um psiquiatra que há 27 anos lida com dependentes de álcool e drogas, o professor aposentado da UFRN Stenio Barros.
Mas nem todos os voluntários do mundo teriam condições de atender à demanda crescente das vítimas do crack. O pastor Lúcio, da Carena, diz que as casas de desintoxicação recebem auxílios voluntários de profissionais, mas elas vêm e vão. "A ajuda é mais solidária, de pessoas da igreja que aparecem para dar palestras", diz.
Para o psicanalista Stenio Barros, a falta de recursos oficiais é um problema para o qual as autoridades deveriam abrir os olhos.
"Apenas a repressão está muito longe de resolver o problema", observa ele, e acrescenta: "Sem educação e um ambiente familiar bom não há como impedir que o depreende volte a consumir."
Um dos casos de iniciativa que conseguiu superar as barreiras da burocracia deve se materializar no mês que vem, na zona norte, com a abertura de uma casa especializada na recuperação de mulheres dependentes de drogas - um trabalho extremamente especializado.
A idealizadora Josefa Maria de Moura, conhecida como "Fifita", diz que precisou de muita paciência para concluir a documentação e acessar financiamentos oficiais de tratamento de dependentes de drogas. Foi num ano perambulando por secretarias e cartórios, tendo que refazer documentos por causa de pequenas palavras, questiúnculas jurídicas. "Mas, enfim, na semana que vem deve estar tudo pronto", diz, aliviada.
Pilhas de mortos
Enquanto isso, as consequências aparecem todos os dias, crivadas de balas e abandonadas em matagais. É o saldo de acertos de contas entre traficantes, envolvendo, na sua maioria, quem já tem ficha na Polícia. "E morre-se por qualquer quantia", diz o delegado titular da Denarc - Departamento de Investigações sobre Narcóticos -, Odilon Teodósio.
Para ele, o problema do crack é o mesmo em todas as unidades da Federação. "Trata-se de uma questão pulverizada cuja solução não está só no combate, mas na prevenção e no tratamento", resume.
Em 2009, por falta de estrutura e pessoal, o Dernac não tabulou os dados sobre apreensão de crack e prisão de traficantes. "Estamos fazendo isso neste ano", garante.
Sem esse dados mês a mês perde-se uma memória imediata de informações úteis, contendo datas, quantidades apreendidas da droga, traficantes envolvidos e outras informações revelantes a uma investigação criminal.
Segundo o delegado titular do Denarc, mesmo sem informações relatoriais, é possível estimar o crescimento do consumo do crack no estado em 30% ao ano. O que não dá um número exato, mas sugere a escala "exponencial" do uso da droga, para usar a expressão do próprio Teodósio.
Até o ano passado, uma pedra de crack custava R$ 5,00. E dados do Fórum Estadual Permanente de Políticas Públicas sobre Drogas, no RN, 90% dos adolescentes envolvidos tinham ligação com o tráfico. Mais: 65% das mulheres do sistema prisional estavam detidas por algum crime envolvendo entorpecentes e 85% dos homens cumprem pena por envolvimento com o tráfico.
Para o delegado Odilon Teodósio, do Denarc, é nítida a tendência dos traficantes de cocaína em voltar-se cada vez mais para o crack. "É mais fácil de produzir e vender", resume.
Jornal De Fato

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